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O filme “Amor à flor da pele” é contemporâneo e trata-se de um estudo
visual a respeito de coincidências que aproximam e afastam as pessoas;
um casal que compartilha de um amor puro, mas jamais concretizado. É
um filme sobre coisas que existem, que são vividas, mas que não são
ditas. O foco não recai no óbvio romance que floresce entre ambos, mas
nos conflitos morais que impedem os amantes de concretizar fisicamente
essa paixão. Através da investigação dos pequenos sentimentos do
dia-a-dia, Wong Kar-Wai transparece sua preocupação em discutir as
relações humanas.

“Amor à flor da pele” tem total influência do movimento artístico do
cinema Francês dos anos sessenta, a Nouvelle Vague. Os precursores
desse movimento, estudiosos de cinema contemporâneos a época, estavam
munidos de uma vontade comum de transgreção às regras de produção
comumente adotadas para o cinema comercial francês daquele momento.
Dessa forma, basearam suas teoria no que viriam a chamar de “cinema de
autor”.

Nesse período de pós-guerra, a Nouvelle Vague concebe um novo tipo de
imagem, caracterizada pela ruptura do “elo sensório-motor” através da
crise da imagem-ação, que é associada por Deleuze à ruptura histórica
da Segunda Guerra Mundial: aparição concreta, entre ruínas da guerra e
a profusão dos vencidos, de espaços desconexos e personagens
atormentados em situações diante das quais eles não têm reação,
engendrando situações que não levam mais a resposta alguma adequada.

Influenciada diretamente pelo Neo-Realismo Italiano, essa imagem que
desorienta para que o produto do pensamento consciente se torne
idêntico em potência à livre disponibilização das potencialidades das
imagens-mundo, é classificada por Deuleuze como imagem-tempo,
caracteriza-se pela ruptura de uma lógica organizada por um esquema
sensório-motor de percepção-significação-ação, é concebida como
elemento de um encadeamento natural com outras imagens dentro de uma
lógica de montagem análoga àquela do encadeamento finalizado das
percepções e das ações que diz respeito a imagem-movimento.

A imagem-tempo mimetisa então a aparição de situações óticas e sonoras
“puras” que não mais se transformam em ações, “espaços desativados nos
quais ela (a personagem) deixa de sentir e agir para partir para a
fuga … indecisa sobre o que é preciso fazer … ela ganha em
vidência o que perde em ação e reação: ela VÊ” (Deleuze, 1990: 323) –
percepção-hesitação-

problematização. Segundo Jaques Rancière, “é a
partir daí que se constituiria a lógica da imagem-cristal, em que a
imagem real não se conecta mais a uma outra imagem real, mas a sua
própria imagem virtual. Cada imagem então se separa das outras para se
abrir a sua própria infinitude. E o que se faz a ligação, daí em
diante, é a ausência de ligação, é o interstício entre as imagens que
comanda, em lugar do encadeamento sensório-motor, um reencadeamento a
partir do vazio. A imagem-tempo vai assim fundar um cinema moderno,
oposto à imagem-movimento, que era o cerne do cinema clássico.

“A antiga profundidade da imagem foi substituída, ou pela profundidade
de campo (figura privilegiada da rememoração), ou então pelos
travellings e planos-seqüência (plano único e longo que acompanha uma
pequena seqüência de eventos), característicos do neo-realismo” (M. F.
Augusto, 2004: 100).  Em “Amor à flor da pele”, Kar-Wai utiliza o
recurso da camera lenta e do travelling, muitas vezes conectando uma à
outra, o que dá ritmo e dramatiza a ação, além de posições de câmera
incomuns, às vezes excêntricas, explorando também a imagem estática
sempre que pode. E vai além: escolhe, para cada tomada, um ângulo
original, que assume o ponto de vista de um voyeur. Essa estratégia
põe a platéia sempre na posição de alguém que, escondido, espia a
ação, sem que os protagonistas saibam que estão sendo observados. A
câmera fica muitas vezes longe, atrás de cortinas, em aberturas de
portas. Ao entrar no jogo de Wong Kar-Wai, o espectador irá perceber
que o filme privilegia um conteúdo que não está nas palavras e,
portanto, nunca é falado; a narrativa do filme está no rigor estético,
no clima de fascínio e mistério, na atuação brilhante dos dois atores.
As coincidências são fundamentais para a narrativa; mesmo sem
representar pontos narrativos importantes para a evolução da ação
dramática, elas se repetem em vários momentos, e tanto aproximam
quanto afastam os dois enamorados. São silêncios e olhares
reveladores.

Kar-Wai utiliza-se de imagens que não são puramente visuais, mas que
em sua harmonização total incitam a necessidade de que ela toda deva
ser lida, ou seja, suas imagens não devem apenas ser vistas, mas
lidas, proporcionando uma analítica da imagem-tempo. “Ao contrário do
cinema caracterizado pela imagem-movimento que nos oferece mais uma
idéia de tempo e um ideal de saber como totalidade harmoniosa uma
representação clássica, onde o espectador é capaz de conhecer o
movimento determinado e composto pela montagem, a imagem-tempo direta
irá nos oferecer a própria ruptura infinita aberta no movimento, o
vazio, o pensamento. A questão não é mais a da associação ou da
atração entre as imagens. O que conta é ao contrário o interstício
entre as imagens. Entre duas ações, entre duas afecções, entre duas
imagens visuais, entre o sonoro e o visual, nos faz vez o
indicernível.” (M. F. Augusto, 2004: 103)

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